Céu de sal, sal da terra
2020
por Luísa Santos
Céu de sal, sal da terra (2020), de Joana Patrão (1992, Barcelos), é uma escultura-instalação-díptico. Produzida especificamente para o espaço de 1,20x1,20x2,35m da Lab Box, um espaço no qual, pelas suas características físicas, só pode entrar uma pessoa de cada vez, implica uma imersão que determina uma leitura vertical, a partir de dentro do lugar / escultura-instalação-díptico que é, na verdade, uma paisagem.
Artistas e arquitectos sempre se interessaram pela beleza e pelos mistérios da natureza apresentando representações de diferentes formas e com diversos meios, mas também reflexões e análises críticas. Focando nas duas últimas, com inúmeros exemplos na história da arte a partir da segunda metade do Século XX, um salto temporal aos anos 1960 levar-nos-á às experiências da land art com trabalhos como a Line made by walking (1967) –uma linha desenhada num terreno a partir de um percurso a pé por Richard Long parece traduzir visualmente a pegada humana na natureza. Mais próximo do tempo actual, no qual as discussões sobre a degradação do mundo natural, as causas e os efeitos das mudanças climáticas são cada vez mais urgentes e transversais a campos disciplinares e a contextos culturais, sociais e económicos, exemplos como Rescued Rhododendrons (1999), de Simon Starling reflectem sobre a relação entre ser humano-natureza de um modo que apela à acção e, muitas vezes, intervém na política. Neste projecto, o artista recuperou rododendros, plantas consideradas ervas daninhas pelo Governo Britânico e, como tal, destinadas à destruição. Ao levar sete exemplares do Norte da Escócia para o Sul de Espanha, num processo de reversão da introdução destas plantas no Reino Unido em 1763 por um botânico Sueco, sublinhou as subtilezas, complexidades e paradoxos do que entendemos como natureza a par de uma atitude claramente política e que serve também de metáfora para questões xenófobas da pureza das espécies. Já trabalhos como os que Olafur Eliasson apresentou na retrospectiva recente na Tate Modern (Olafur Eliasson: In Real Life – July 2019 – January 2020) usam a manipulação do espaço para amplificar a nossa auto-percepção com o que isso implica na tomada de consciência do papel que temos na natureza.
O trabalho de Joana Patrão junta estas tradições da investigação do papel do ser humano na natureza – por um lado, implica uma dimensão material da natureza e dos efeitos (físicos) humanos nesta materialidade e, por outro lado, implica uma acção simultaneamente física e mental para amplificar os processos individuais da percepção e da consciência. Estas dimensões de Céu de sal, sal da terra podem ser lidas em três partes: i) experiência; ii) matéria; e iii) tempo.
i) Experiência
A experiência de entrar em Céu de sal, sal da terra é reminiscente da noção de fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty (1945) (e dos seus antecessores nesta ideia, como G.W.F. Hegel) e, em particular, da concepção de experiência vivida enquanto “estar-no-mundo-a-partir do-seu-interior”2. Esta ideia expressa, por um lado, a inevitabilidade do contacto entre o corpo e o mundo que o rodeia e, por outro lado, a necessidade da experiência física do mundo para o entendermos / conhecermos.
Quando entramos no espaço de Céu de sal, sal da terra somos confrontados com uma (porção de) paisagem que existe nos limites dos nossos corpos. Para ver esta paisagem organizada segundo a estrutura linear céu-terra, sem linha de horizonte, é preciso estar dentro dela. Esta acção implica uma transformação do espaço num “teatro de acção” no qual, por um lado, o corpo flui em direcção aos objectos (Merleau-Ponty, 2002:121) e, por outro lado, os dois elementos (o sal que compõe a porção de céu e a pedra que compõe a fracção de terreno que pisamos) precipitam-se entre si e, nesta precipitação, perpassam-nos e limitam-nos.
ii) Matéria
Se conhecemos esta porção de paisagem a partir da experiência da sua matéria em confronto com a nossa própria matéria e fisicalidade, então o nosso corpo é matéria presente, envolvida, e viva desta paisagem composta por um céu de sal e um terreno de lioz. O sal que se precipita sobre as nossas cabeças detém um simbolismo paradoxal - preserva tanto quanto corrói; protege tanto quanto impede crescimento. Metáfora para a relação vida-morte, pela sua capacidade de dissolução na água e posterior recristalização, representa ainda o processo alquímico de divisão, depuração e reintegração na instabilidade que este processo implica. Mediante o aumento da humidade do ar, esta parte de céu feito de uma folha com cristais de sal pode voltar a dissolver-se e desabar sobre nós no seu movimento de regresso à pedra do chão.
O lioz pode ser facilmente associado, em contexto Português, ao colonialismo, a narrativas de poder e domínio, e à reconstrução de Lisboa pós terramoto de 1755. Contudo, a protagonista na narrativa de Céu de sal, sal da terra é a condição física e natural do material. A luz que perpassa o céu de sal evidencia a presença dos fósseis de rudistas extintos, habitantes remotos deste território agora ocupado por nós. O exercício que Joana Patrão nos pede é, assim, simultaneamente físico (de entrar no espaço) e mental (tornar-nos paisagem) apelando à imaginação material (Bachelard, 1980) que resiste às transformações formais. O que esta resistência implica é que, ao manter sempre a sua substância, a matéria torna-se transversal aos tempos e às origens das imagens.
iii) Tempo
Nesta paisagem, com um céu de sal e um chão de calcário fossilífero, os nossos corpos parecem estar submersos num mar que já não existe, testemunho de um passado ou potencial de um futuro. O conflito entre os tempos desta paisagem – presente, passado e futuro - apresenta-se num confronto connosco. Em primeira instância, confrontamo-nos com o tempo presente que limita os nossos corpos a uma porção de céu e de terra. Já os organismos de origem sedimentar marinha revelados na pedra de lioz, que se organizavam em recifes, revelam um tempo (e um substrato) em que Lisboa estaria submersa num mar.
Céu de sal, sal da terra restringe-se às dimensões exíguas responsáveis por uma sensação de confinamento entre um céu e uma terra físicos num tempo presente mas a história e o simbolismo da sua matéria libertam-nos para uma paisagem tão mais extensa e de uma temporalidade tão múltipla quanto as nossas mentes o permitirem. Este exercício de confinar e libertar em simultâneo serve de metáfora para a relação entre a micro leitura da auto-percepção e a macro leitura da condição humana: o acto individual, aparentemente benigno, de pisarmos o terreno é também colectivo. O que pisamos, afinal, são fósseis de rudistas extintos, testemunhos exemplares de uma espécie da última grande extinção em massa, num passado que parece estar a assombrar-nos num futuro próximo.
Por outras palavras, Céu de sal, sal da terra is a 1,20x1,20x2,35m é uma micro paisagem de 1,20x1,20x2,35m que nos confina aos limites dos nossos corpos. Mas, ao implicar uma multiplicidade de lugares culturais, sociais e políticos, adopta uma dimensão que nos ultrapassa, impossível de medir fisicamente. O papel que escolhemos ter – confinados a uma microescala ou conscientes do nosso potencial de mudança a uma macro escala – é da inteira responsabilidade de cada um de nós.
_______________
1 Merleau-Ponty, Maurice (1945). Fenomenologia da Percepção , trad. por Colin Smith, Londres 2002.
2 Dreyfus, Hubert L. & Dreyfus, Patricia A., “Introdução dos Tradutores” em Maurice Merleau-Ponty, Sense and Non-Sense , 1948, Evanston 1968, p. xii.
3 Bachelard, G. (1980). L'eau et le rêves: Essai sur l'imagination de la matière , Paris: José Corti.