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versão portuguesa

Sombra ao sol   2023                   

por Frederico Portas e Tomás Agostinho

SOMBRA AO SOL de Joana Patrão (n. 1992), com obras de Lourdes Castro (1930 — 2022), é o quinto momento do ciclo TÊTE-À-TÊTE, na HÉLDER ALFAIATE — GALERIA DE ARTE, na Ericeira. A exposição sugere um diálogo entre duas práticas artísticas heterogéneas mas ainda assim relacionais: promovendo o encontro da conjuntura no diverso, da miscigenação do diferente, da montagem entre desiguais. Uma montagem intranquila e irrequieta, que tem como assunto uma multiplicidade de referências, dispositivos e zonas criativas.

\\ O colecionismo

Em Sombra ao sol: pequeno herbário das sombras (2023), de Joana Patrão, encontramos seis imagens. Em certa medida, seis páginas de um “bom livro”. Observam-se as sombras de folhas em decomposição e esqueletos (estes sinais de vitalidades passadas) recolhidas no solo do seu jardim. Após a recolha, a artista coloca as folhas entre papel fotossensível e vidro para que, durante longas exposições (em alguns casos ao longo de duas semanas), se formem as imagens no papel. Conforme a luz solar, o tempo e a meteorologia geram-se as silhuetas destes fantasmas e ruínas de organismos decompostos. Deste gesto de conservação — na verdade, um fenómeno químico de corrosão do papel pela luz — surgem negativos ou sombras. No verso de cada imagem, observamos uma espécie de etiqueta, carimbo ou referência a um arquivo com o título da obra, em alguns casos as coordenadas do local em que as folhas foram recolhidas, a assinatura. Mas não só, os versos que mimetizam as frentes (confusos conforme a confusão das obras, desenhados conforme os desenhos das imagens, fantasmais conforme os fantasmas das imagens).


Numa remissão direta à noção de Hortus Siccus ou Herbário, as obras de Joana Patrão denotam um ímpeto — e por isso também uma tensão — colecionista: um interesse em recolher, captar, e escrutinar os vestígios da vida orgânica. Andar, ver, ver, ver, apanhar, guardar, catalogar; andar, ver, ver, ver... sem fim à vista, porque a coleção (enquanto tensão desidrativa ou desejo), lembra-nos Walter Benjamin, é sempre um ensejo indomável e indomesticável. É este o processo do colecionador, esse voyeur atento e cuidadoso em relação às coisas que o situam, ao frívolo, ao trivial e às simples coisas tornadas interessantes; importantes; fundamentais.

 

Talvez sem ironia, o Pequeno herbário das sombras de Joana exprime, e de certo modo homenageia, o Grand Herbier d'Ombres [Grande Herbário de Sombras] (1972), de Lourdes Castro. Certamente sem ironia, é a partir dele, com ele e sobre ele que se manifestam as obras da artista mais jovem. Se a noção de herbário tende a convocar a prática de recolha de exemplares de espécies orgânicas em nome da sua memorização (da sua catalogação), Joana Patrão e Lourdes Castro não têm esse como motivo único. Isto é, verificando-se um interesse propriamente arquivista, o que sobressai é na verdade a atração em direção às zonas criativas que dele podem emergir. Ambas catalogam, arquivam e examinam mas, no processo, catalogam-se, arquivam-se e examinam-se a si mesmas. Vêem-se os seus traços, os seus pontos de vista, as suas sensibilidades, as suas imagens e a sua poesia. Tratam-se, enfim, de desenhos fotogénicos dos quais irrompem objetos estéticos. Ironicamente, agora sim, o Grande Herbário de Sombras, de Lourdes Castro, não está patente na exposição. Ou estará? Não será o herbário de Lourdes Castro um
ponto de partida, e também por isso uma espécie de sombra, para todas as obras que vemos no espaço?
Não será que o Grande Herbário, de certo modo, irradia, magnetiza e abre as imagens da exposição? Não será
que, e talvez seja esta a questão mais importante, que o Pequeno herbário das sombras de Joana Patrão nos
providencie chaves de compreensão para a obra de Lourdes Castro?

\\ O fotográfico

Entre a fotografia mecânica e o vídeo, o tempo de exposição imediato e o tempo prolongado, Sombra ao sol sugere um exame crítico da condição da imagem fotogénica, como que num ato de “atirar pó à engrenagem” daquela que tende a ser a nossa compreensão das imagens fotográficas. Se — fruto da sua natureza metonímica — a fotografia tende a ser acompanhada por uma indespedível crença de realidade, a exposição poder-se-ia compreender como sendo uma problematização disso. Ao tornar visíveis uma multiplicidade de registos mecânicos, ao representar uma máquina fotográfica (Sem Título, Lourdes Castro, 1995), um vídeo que tem como motivo a sombra (Envolta, Joana Patrão, 2023) e imagens fotossensíveis ora com gestos, ora com poesia, ora com vidros partidos (Sombra ao sol: pequeno herbário das sombras, Joana Patrão, 2023), a exposição acaba por ter como assunto as problemáticas do próprio mecanismo de captação maquinal: nas suas confusões e esquematizações, nas suas forças e fraquezas. Vemos câmara mas também olhares, realidade mas também gestos criativos, referentes fotográficos mas também os pontos de vista que, inelutavelmente, o produzem. De sorte que, em parte, se possa adquirir uma peculiar posição acerca da vida por via de olhar familiarizado com a instabilidade figural da representação mecânica. Talvez a força da imagem radique, como nos recorda Barthes, do que ela nos esconde.

\\ Um bom livro

Montar, recorda-nos Lyotard, é ler um “bom livro”. Um livro em “que o leitor pudesse iniciar em qualquer ponto, por qualquer ordem: um livro a ser mastigado” (Jean-François Lyotard, Discourse, Figure, 2009, p. 35 [nossa tradução]). De sorte que Sombra ao Sol, de Joana Patrão, tem em vista a constituição de um espaço de leitura aberto e transacional, onde cada ponto — cada obra, símbolo ou expressão — coexiste com todos os restantes; uma espécie de deserto na medida em que cada fim é já um início e vice-versa. O espectador — a artista, os curadores, os visitantes — é solicitado à captação das relações intrínsecas entre obras e discursividades plásticas, nas suas afinidades e diferenças, nas suas fendas e hiatos. O observador é chamado, enfim, “a adivinhar o todo do qual só se lhe dá uma parte”. (Robert Bresson, Notas sobre o Cinematógrafo, 2000, p. 93)

\\ A montagem


Se Sombra ao Sol é análoga à esquisita experiência de ler “um bom livro”, isso quer dizer que ela propõe uma transcendência ou êxodo às obras individualizadas. É, porventura, na sua natureza sobredimensionada que se promovem movimentos do olhar, do corpo e da intuição (muito antes da contemplação ou abstração), capazes de aproximar ou afastar, construir ou desconstruir, as ligações entre práticas, referências, temáticas ou obras. Talvez aconteça que toda a obra de Lourdes Castro coexista fantasmalmente no espaço na medida em que cada obra é sinal de uma fase diferente dos seus trabalhos (numa progressão da acumulação — Porte bonheur, 1962 — para as sombras dos amigos e para o Teatro de sombras, 1974). Do mesmo modo, a sombra, o sol, a imagem fotográfica, a auto-representação, o ímpeto arquivista, os fantasmas, o fascínio acerca do banal se apresentem como “portas de entrada” para a experiência — fenomenológica e projetiva — que Sombra ao Sol promove. Em última análise a ideia de que “uma imagem é sempre uma alteração que ocorre numa cadeia de imagens que, por seu turno a altera também” (Jacques Ranciére, O Espectador Emancipado, 2010, p. 139) ganha corpo no espaço da galeria e cabe ao espectador (o visitante mas também os curadores e a artista) a resolução deste peculiar puzzle — desta experiência lúdica — que Joana Patrão nos convida a participar.

Organização e produção:

TÊTE-À-TÊTE e HÉLDER ALFAIATE — GALERIA DE ARTE

Curadoria:

Frederico Portas e Tomás Agostinho

Design e Comunicação:

Patrícia d'Almeida Gomes
                                                       
               

Agradecimentos:  Ana Dâmaso, Armando Valente, Catarina Chaves, Joana Patrão,

 João Miguel Gomes, Luísa Alfaiate, Natacha Ventura e Tiago Madaleno

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